Por Lucas Guedes, VP de negócios da Boa Vista
Artigo publicado originalmente no site da Época Negócios
Não é preciso ser especialista e nem acompanhar os índices que traduzem o desempenho da economia diariamente para saber que o cenário ainda é difícil. As dificuldades econômicas podem ser percebidas no dia a dia por pessoas e empresas, e a inadimplência é uma delas. Mas mesmo em um momento desafiador como o atual, é possível encontrar soluções capazes de contribuir para reduzir a taxa de inadimplentes no mercado. A inteligência - seja a humana, a capacidade analítica de especialistas qualificados, seja a artificial, que utiliza novos modelos algorítmicos - tem se tornado um instrumento ainda mais importante para atingir este objetivo.
Antes de nos aprofundarmos um pouco mais sobre essas soluções analíticas, convido o caro leitor e a cara leitora para um olhar sobre o cenário desafiador que tem motivado, cada vez mais, o seu desenvolvimento. Uma pesquisa publicada pela Boa Vista, no final de julho, mostrou que o não recebimento de pagamentos pelas vendas realizadas é o principal problema enfrentado pelas empresas para a manutenção de seus negócios durante a pandemia. Este desafio foi apontado por 52% dos entrevistados no estudo, que ouviu empresários de todas as regiões do país. A constatação reflete o aumento da inadimplência do consumidor, que chegou a 2,1% em julho, segundo a própria Boa Vista, e vem sendo impulsionado pela alta do desemprego e pelo impacto na renda das pessoas causado pelas seguidas altas na inflação - só no mês passado avançou 0,96% e atingiu um acumulado de 8,99% em 12 meses, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).
No entanto, como dissemos, a inteligência analítica pode contribuir para minimizar o problema da inadimplência, aliviando a vida financeira das pessoas e das empresas. Com o avanço das novas tecnologias, soluções com base em analytics - termo que pode ser traduzido como o uso da inteligência aliada a inovações tecnológicas como o machine learning na análise de grande volume de dados -, operadas por especialistas, têm sido criadas para tornar o mercado de crédito mais sustentável. O objetivo é ajudar as empresas a reduzirem a inadimplência e, ao mesmo tempo aumentar as taxas de aprovações de crédito de maneira segura.
Os modelos baseados em algoritmos – que são modelos matemáticos/estatísticos – têm evoluído a cada dia, de forma cada vez mais rápida e sofisticada. Este desenvolvimento dos algoritmos e das soluções baseadas em analytics é cada vez mais necessário para dar conta da grande expansão do volume de informações disponíveis que ajudam a traçar perfis de consumidores e empresas. O objetivo de tanto esforço analítico sobre os bancos de dados é contribuir com a maior precisão nas diversas avaliações que as concessoras de crédito têm de fazer para terem uma gestão de seus riscos mais consistente. Exemplos são identificar quais são os clientes mais propensos a renegociar dívidas ou quais têm capacidade financeira para fazer determinadas compras financiadas. Experiências vivenciadas por instituições financeiras que já utilizam algumas dessas soluções mostram que a inadimplência de seus clientes foi reduzida em até 50%.
Evolução regulatória
E quando dizemos que o volume de informações disponíveis a serem analisadas tem se multiplicado, isso se deve em grande parte à evolução regulatória brasileira. A Lei do Cadastro Positivo, que desde 2019 prevê a inclusão automática dos dados dos consumidores, é um marco nesse sentido e vem favorecendo o mercado de crédito e o desenvolvimento dessas soluções. O Cadastro Positivo passou a servir como uma espécie de "currículo" dos pagamentos feitos (ou não) pelo consumidor. Com o envio, a partir de abril deste ano, dos dados das empresas de telecomunicações, mesmo aqueles que não possuem conta em banco podem mostrar que estão com suas contas em dia e deixar de serem “invisíveis” no mundo do crédito. Este efeito inclusivo será ampliado com a disponibilização dos dados das empresas de saneamento e energia que devem acontecer até o final de 2021.
Mas o novo banco de dados já tem trazido benefícios para os consumidores, como comprova o “Relatório com Análise dos Efeitos do Cadastro Positivo”, divulgado em maio pelo Banco Central (BC). O estudo mostra que entre os que permaneceram no Cadastro Positivo (existe a opção de deixar o banco de dados), 41% melhoraram a sua classificação de risco, 33% permaneceram na mesma faixa e 26% tiveram queda em sua “nota de crédito”. Efeitos positivos também são percebidos no setor privado: 30% das empresas migraram para a faixa de menor risco para tomada de crédito (se juntando a outros 50% que permaneceram na mesma classificação) e apenas 20% migraram para a faixa de risco maior. O relatório do BC aponta ainda que, em apenas dois anos, o Cadastro Positivo possibilitou a redução de 10,4% nas taxas cobradas em linhas de crédito pessoal não consignado para novos tomadores de crédito, equivalendo a uma queda de 31% na taxa de juros anual.
Montanha de dados
Por outro lado, é necessário capacidade analítica e tecnologia para interpretar as informações dos mais de 110 milhões de consumidores que, estima-se, permaneceram no Cadastro Positivo, que vêm a se somar a outras dezenas de milhões que fazem parte dos cadastros de devedores (destes, não se pode solicitar a saída, a menos que não se tenha pagamentos em atraso), entre outros bancos de dados. Só assim as instituições financeiras e o Varejo podem ter um olhar mais aprofundado, amplo e claro sobre clientes que demandam e que suportam tomar crédito, podendo ofertar financiamentos ou vendas financiadas com mais segurança e a taxas menores.
E a montanha de dados disponíveis só tende a aumentar. Em outra inovação regulatória, o Open Banking permitirá aos correntistas de um banco disponibilizar seus dados para as instituições financeiras concorrentes. A medida busca disponibilizar para o consumidor com histórico de pagamentos em dia ofertas de empréstimos com juros mais baixos, melhores condições em cartões de crédito e seguros, entre outros produtos bancários. No entanto, o sucesso do Open Banking depende, novamente, do uso de avançadas técnicas de analytics. Isso porque nada impede, em um exemplo, que um consumidor que tenha contas em dia em um banco, mas não tenha um histórico tão bom em um segundo banco, disponibilize apenas as informações do primeiro – a regulamentação do Open Banking dá esta opção ao cliente.
Assim, são dois os desafios para as instituições financeiras que pretendem utilizar da inovação regulatória para conquistar novos clientes. O primeiro é que será necessário, para ter segurança de que aquele consumidor almejado é mesmo um bom pagador, cruzar os dados disponibilizados por ele com os existentes em outros bancos de dados, como os do Cadastro Positivo e os de negativação. O segundo desafio é específico das fintechs e instituições financeiras emergentes: fazer o cruzamento de tantos bancos de dados diferentes exige grandes equipes e ferramentas de analytics, com as quais, em geral, elas não contam, ao contrário do que acontece com os grandes bancos.
Como são estas instituições financeiras “entrantes” no mercado que mais competem por novos clientes, se elas não se prepararem adequadamente para interpretar os dados vindos do Open Banking, os objetivos da inovação regulatória tendem a se frustrar. Felizmente, estes bancos emergentes e as fintechs podem contar, hoje, com empresas especializadas em inteligência analítica e, assim, poder fazer ofertas atrativas para os clientes da concorrência. Esta competição deve dar nova contribuição para reduzir as taxas de juros e ofertar melhores condições para o consumidor. Ou seja, será mais um fator indutor da redução da nossa aqui tão discutida (e incômoda) inadimplência.